domingo, 23 de dezembro de 2012

A hipocrisia do Natal*

"Os homens preferem adorar o nada e a mentira a nada adorar, pois para eles qualquer hábito é melhor do que não ter nenhum hábito." (Friedrich Nietzsche)

Poucas datas comemorativas despertam tanto o lado sádico das pessoas como o Natal. Em tese, essa época seria de reflexão sobre a conjuntura social do planeta, objetivando a criação de políticas sociais, humanas, que propiciem a igualdade, a fraternidade e, sobretudo, a liberdade dos homens. Na prática nada disso é observado além de alguns axiomas vagos sobre uma solidariedade mal definida. Jargões desgastados, até enjoativos, se repetem de forma pouco persuasória. 

Uma  indagação  pertinente  àqueles  que  proferem, nessa época, o impreciso discurso de solidariedade, seria saber onde estava seu coração solidário durante todo o  ano, bem como onde o guardará após a passagem dessa data. Em nossos  dias  de  sobrevivência  somos  perseguidos  e  torturados  psicologicamente  por  pessoas  que, sem muitas razões,  desejam-nos  feliz Natal  e  próspero  ano  novo.  Ironicamente,  são  justamente essas mesmas pessoas que tornam  os  nossos  anos  bem  mais  difíceis.  Muitas  delas  são  familiares que, no decorrer do ano, mal se lembram da nossa existência e menos ainda nos dão apoio nos momentos de aflição.

A rigor,  o  Natal  será  interessante  na  medida  de  nossa  renda. Tudo é mercadoria, e ela é que dará as diretrizes da nossa   felicidade.  Durante   todo   o ano  somos  perseguidos  por  pensamentos  de  ódio  aos  pobres,  defendemos posições  ortodoxas  com relação à criminalidade, sempre nos esquecendo das circunstancias econômicas em que o crime prospera, erguemos os vidros do carro quando uma criança se aproxima no farol, pouco nos importando aquela realidade que está tão longe de nós. Mas agora, como é Natal, mudamos de pensamento e, quem sabe, podemos até oferecer um presente a essas crianças, como roupas velhas que já não nos servem para nada. 

Esses dias que estamos vivenciando atingem o fastígio máximo da hipocrisia e do engodo. Celebra-se um conjunto de mentiras, todas pré-moldadas pelo sistema econômico a que estamos submetidos. Torna-se perceptível o espírito da falsidade, dos interesses baixos, tudo isso ornamentado com um jogo de sedução que não é possível resistir. Sarcasticamente, comemora-se o nascimento de Cristo com ostentação, desperdício e celeuma. Algazarra e alcoolismo não parecem ser condutas cristãs, sobretudo quando se celebra a data máxima dessa filosofia. Esses métodos de festejo expressam o quanto imbecis e embrutecidos ainda somos. 

No dia-a-dia, o Natal se tornou nada mais do que um reflexo da cobiça humana e da fúria capitalista que escraviza nossas mentes. Há um consumo desenfreado, sem sentido, onde muitos trabalham enlouquecidamente para beneficiar alguns poucos lojistas abastados. A mídia muito se fala em "espírito natalino", "Natal sem fome", mas ela é o principal instrumento de manipulação popular, manipulação essa que visa, sempre, à manutenção de um sistema econômico desigual. 

A isso tudo, soma-se as características dos símbolos natalinos que, abaixo da linha do Equador, são tão autênticos quanto uma cédula de três reais. Neve, pinheiros, um papai Noel vestido com roupas típicas dos Pólos refletem exatamente as características de onde moramos, sobretudo nessa época do ano. De fato, é fácil notar em nossas janelas, por esses dias, muita neve a correr pela vidraça.

*Artigo publicado no jornal Folha de Votorantim em 23 de dezembro de  2010.

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